Memorial do Amor

sexta-feira, novembro 18, 2005


Sempre que vou a algum lugar que sei que pode demorar, que posso ficar esperando por muito tempo, levo um livro para me fazer companhia. Hoje foi um destes dias. Estou concorrendo a uma vaga de emprego e, entre espera pra começar, espera pelo ônibus e trajeto até em casa, li um livro inteiro em uma tarde, 142 páginas.

Foi o "Memorial do Amor", da Zélia Gattai. Recomendo muito, é delicioso! Nele, Zélia conta episódios inesquecíveis para ela e Jorge Amado em sua casa do Rio Vermelho, em Salvador. É apaixonante viajar por suas memórias, saborear cada um dos episódios relatados por ela e que mostram que uma vida feliz é feita por pequeninas felicidades. Dá até uma inveja (a inveja boa, claro) e um desejo imenso de que nossas histórias sejam tão "eternas" quanto a dela e de Jorge Amado.

Bem, mas por fim gostei tanto que vou reproduzir um pedacinho aqui, o inicinho do livro:

DESPEDIDA
"Sobre nossa casa, de Jorge e minha, na rua Alagoinhas, 33. no bairro do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, muito já se disse, muito se cantou. Citada em prosa e verso, sobra-me, no entanto, ainda o que dela falar.

Fico pensando se alcançarei escrever todas as histórias, tanta, de gente e de bichos que nela passaram nesse quarenta anos lá vividos.

Neste momento, quando me despeço do lugar onde passei o melhor tempo de minha vida, ao deixar Jorge repousando sob a mangueira por nós plantada no jardim, mil lembranças afloram-me à cabeça. Lembro-me de coisas que para muitos podem parecer tolas, mas que para mim não são.

Lembro-me, por exemplo, de duas mimosas lagartixas que viviam atrás de um quadro de Di Cavalcanti, acima da televisão da sala, e que tanto nos divertiram. um belo dia elas apareceram, sem mais nem menos: uma toda rosada, quase tranparente; a outra com listras escuras em volta do corpo. Jorge foi logo escolhendo: 'A zebrinha é minha.' A mais bonita, pois, ficou sendo a dele. A outra, que jeito? De dona Zélia.

Recostados em nossas poltronas, após o jantar, para assistir aos noticiários de TV, vimos, pela primeira vez, as duas saírem de seu esconderijo, uma atrás da outra, direto para uma lâmpada acesa, no alto, reduto de mosquitos e de bichinhos atraídos pela luz.

- Elas agora vão jantar - disse Jorge.

Dito e feito: as duas se aproximaram docemente da claridade, estancaram a uma pequena distância da lâmpada e, imóveis, na moita, só observando. De repente, o bote falta foi desfechado e lá se foi um dos insetos para o bucho da largatixa de Jorge. Diante do perigo, quem era de voar voou, que era de correr, correu, lá se foram os bichinhos, não sobrou um pra remédio, o campo ficou limpo.

Estáticas, as duas sabidas aguardaram pacientes a volta das vítimas, que, inocentes, aos poucos foram criando coragem e se chegando para, ainda uma vez, cair na boca do lobo. Ainda uma vez o lobo foi a zebrinha, que, como num passe de mágica, abocanhou um mosquito. Encantado, Jorge ria de se acabar, provocando-me: 'A tua não é de nada!' Eu protestei e ele riu mais ainda.

Brincadeira boba, inocente, passou a ser nosso divertimento durante muitas e muitas noites, muitas e muitas noites voltamos à nossa infância."
Zélia Gattai, em Memorial do Amor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Em 95 fui a estréa da peça Capitães de Areia em Fortaleza, na qual meu melhor amigo, atuava. Eu vi de pertinho Jorge e Zélia, quanta honra! Li alguns livros dele, fui a Salvador na Casa de Jorge Amado, enfim, quem gosta de amor e poesia admira muito esse casal. Adorei o post, conta mais, não conheço esse livro.

Thaty disse...

Eu nunca vi o Jorge de perto (perdi minha chance), mas já entrevistei o Ziraldo. Foi uma super emoção, ainda mais pra quem estava acostumada a só entrevistar ministros (não tem graça nenhuma). Os livros do Jorge Amado são ótimos, mas os da Zélia são mais aconchegantes, encantadores. Pouco a pouco eu vou colocando umas coisinhas dela por aqui (tenho também o livro Códigos de Fámilia).